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O direito administrativo nos setores regulados: entre o academicismo e a tara pelas siglas

Os setores econômicos mais densamente regulados (água, energias, minérios, transportes, telecomunicações etc.) potencializam uma realidade infelizmente ainda muito comum no Direito brasileiro: o imenso distanciamento entre a prática e o ensino jurídico.

Do lado do ensino jurídico, há completa ausência de enfoque ao Direito Regulatório nas matrizes curriculares dos cursos de Direito, o que se alia à falta de centros jurídicos especializados no estudo do fenômeno regulatório no Brasil – salvo raras (e elogiáveis) exceções. Como consequência, o estudo da regulação jurídica vai se desenvolvendo, por comodismo, a partir de bases e conceitos conhecidos e confortáveis ao estudioso. É o Direito Administrativo “Geral” (como classificam os alemães) aplicado a fórceps para tratar dos fenômenos da regulação de setores econômicos infraestruturais. Resultado disso é a construção exageradamente academicista, sem qualquer viés pragmático, de análises, conceitos e princípios desconectados da realidade dos setores regulados, de diminuta operatividade. Nós administrativistas costumamos cair nessa armadilha de maneira automática, desapercebida. É um vício padrão de comportamento, difícil de lidar.

De outro lado, na vertente da prática, o operador do direito – com escassa oportunidade de se dedicar ao estudo do Direito Regulatório antes de atuar no setor – se vê abruptamente fagocitado por uma realidade em que siglas pululam aos montes, formando sopas de letrinhas que o organismo precisa se acostumar a digerir. Num movimento que Niklas Luhmann teria prazer em descrever, cada setor regulado vai formando seu código, sua linguagem personalíssima, e consolida seu “ordenamento setorial” (Santi Romano). As siglas desempenham aqui um importante papel: demonstrar quem é insider e quem é outsider, dificultar o debate e, em última medida, consagrar a autopoiese do sistema. Tomando o exemplo do setor elétrico, uma rápida conversa com qualquer operador demonstrará o que aqui se afirma. Se indagado quais os maiores pontos de inflexão do setor no futuro próximo, a resposta virá em siglas: GD, GSF, MCP, ONS… No intestino dos setores regulados, o Direito Administrativo é desarticulado e se lhe trocam os pés pelas mãos: Resoluções e Portarias são louvadas com status de norma fundamental, a Constituição por vezes é mero detalhe.

Como é evidente, esse distanciamento entre teoria e prática promove graves distorções, que se tornam extremamente visíveis em momentos de inflexão regulatória. Um exemplo o atesta.

Dia desses participei de evento em que se discutiu a famigerada alteração na Resolução 482/2012 da ANEEL – tema que já tem se tornado recorrente nos atualmente monotemáticos eventos de Direito da Energia. A Resolução trata da microgeração e minigeração distribuída de eletricidade (para os íntimos, a “GD”), é pródiga em auferir créditos de compensação aos produtores (“prosumidores”) de energia que se enquadram em seus termos, e está em vias de ser revista pela Agência para equalizar alguns encargos que têm sido mal redistribuídos no setor. Pelas tantas, sobreveio afirmação em tom de fim de argumento: Mas e o direito adquirido à imutabilidade do regime jurídico? Presumo que a indagação tenha provindo de partidário da vertente acadêmica (caso contrário, atuantes do setor teriam indagado “mas e o DARJ?”).

Questionamentos como esse demonstram a craquelagem hoje existente entre teoria e prática no setor. Quando uma premissa fundamental da atividade regulatória (a da natural flexibilidade do regime regulatório para se ajustar à natural evolução econômica da atividade regulada – sobretudo com o avanço galopante das tecnologias) é questionada com argumentos abstratos num tom de “super trunfo”, algo tem de estar errado. É claro que não se está aqui defendendo, no extremo, a ausência de estabilidade e segurança jurídica nos setores regulados – alegá-lo seria ignorar a Constituição e grandes avanços legislativos como a Nova LINDB e a Lei Geral das Agências Reguladoras, plenamente aplicáveis à atividade regulatória. Mas entre direito à estabilidade e direito à imutabilidade da regulação o passo é bastante largo.

Não há razão para aprofundar esse ponto nesse momento. O exemplo foi usado apenas para demonstrar como é urgente a necessidade de conectar teoria e prática nos setores regulados. Enquanto os teóricos do Direito Administrativo ignorarem a prática e os práticos ignorarem o Direito Administrativo, pouco se avançará. Para superar o estágio de letargia entre o academicismo e a tara pelas siglas, é preciso mudar ASAP.

Fonte: Fernando Menegat é doutorando em Direito Administrativo pela USP

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