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“Três faces do autoritarismo”

O Estado democrático de direito não é uma conquista definitiva. Seus algozes estão sempre à espreita para fazer uso do autoritarismo, tão logo as bases da democracia pareçam insuficientes para dar respostas imediatas às crises em efusão. Esse cenário é evidente no Brasil, quando, a todo abalo na estabilidade política, econômica e institucional, sucede um clamor por soluções autoritárias. Não raro, ouvimos exasperadas reivindicações por intervenção militar entre os setores mais desiludidos (e conservadores) da sociedade.

Segmentos oportunistas da mídia, das instituições públicas e das lideranças políticas prontamente engrossam o coro dantesco do autoritarismo. O punitivismo é vendido como subproduto para acalentar o desejo de entretenimento das massas numa sociedade do espetáculo1. Com frequência, nesse caminho são esfacelados os mais elementares princípios que fundamentam uma convivência social justa, pacífica e igualitária.

O espetáculo do punitivismo reiteradamente toma a forma de um panis et circenses judicial. Serve-se dos meios e das formas jurídicas/judiciais para ganhar projeção e alcançar seu desfecho – algo semelhante às vetustas ”expiações em praça pública”. Poderíamos afirmar, então, que neste particular o discurso jurídico se imiscui com a política, e da má política se contamina completamente. Juízes, promotores, delegados – figuras relacionadas ao universo jurídico – forjam protagonismo na cruzada pela moralização das instituições democráticas assoladas pela corrupção, pelo patrimonialismo e pela má gestão dos recursos.

O direito existe primordialmente como garantia do cidadão ante o poder da autoridade. Há Constituição, leis, procedimentos judiciais, direitos e garantias fundamentais para que a autoridade do Estado, onipotente a priori, encontre limites e respeite interesses jusfundamentais que se reputem dignos de garantir a todo indivíduo. Em um Estado democrático de direito, o direito é limite contra o arbítrio, e não instrumento de (ab)uso do poder2. O autoritarismo desponta justamente quando esse princípio se inverte, e o direito torna-se mera ferramenta para que as autoridades exerçam poder e influência, e imponham suas concepções morais de forma despótica, à revelia dos contornos da lei e da política republicana.

O fenômeno do recrudescimento do autoritarismo contemporâneo emerge, nas democracias,3 sob três formas distintas, porém complementares: a consolidação do Estado Policial, o direito penal do inimigo e a técnica de lawfare.

a) Noutra oportunidade,4 explorei o entrelaçamento entre o discurso do direito penal do inimigo e a exacerbação do Estado Policial. O Estado Policial é artefato muito antigo, nascido concomitantemente ao Estado-nação liberal, componente de uma das faces da estrutura ambivalente deste (conforme a metáfora do Estado-centauro, a um só passo racional e violento, difundida por Loïc Wacquant). O direito penal do inimigo é um discurso contemporâneo que, em certo sentido, serve como justificativa ou pretexto para o avanço e o agigantamento do Estado Policial.

O Estado moderno é desde sempre paradoxal. Nele convivem instituições liberais, destinadas a resguardar os direitos individuais de liberdade, igualdade e propriedade, bem como instituições repressivas, destinadas a coibir as violações à ordem jurídica pelo uso da força coercitiva. Revela-se um Estado Policial quando irrompe um desequilíbrio entre ”a cabeça e o corpo do centauro”: entre a finalidade de assegurar a estabilidade social e o uso desproporcional da coerção. Ele desponta quando a violência se transmuda de exceção para regra.

Em princípio, o Estado Policial pode direcionar sua máquina repressiva contra quaisquer pessoas sobre as quais pesa a alegação de ameaça ou ofensa à ordem social juridicamente protegida. O direito penal do inimigo descortina um fenômeno em que os sujeitos passivos da repressão são tratados sob um status diferenciado – o status de inimigo – simplesmente porque pertencem a um grupo social declarado ”inimigo público”.

A elaboração do conceito moderno de inimigo deve-se, em grande medida, à concepção de política de Carl Schmitt,5 para quem os Estados-nação emergiram em torno da divisão entre ”nós” e ”eles”, isto é, do confronto entre o Eu (a união de nosso povo) e o Outro (o estrangeiro, o diferente de nós: o inimigo). A constituição do inimigo seria, pois, a essência do político. O penalista alemão Günther Jakobs, por seu turno, introduz o conceito de inimigo no centro gravitacional da Criminologia.

Jakobs propõe uma bifurcação/dissociação subjetiva no direito penal: para as pessoas comuns, que eventualmente tenham cometido um erro, opera o direito penal do cidadão, com todas as garantias e direitos inerentes à pessoa humana; para os inimigos sociais, considerados aqueles que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, na medida em que não oferecem uma segurança cognitiva a respeito de seu próprio comportamento, intercede o direito penal do inimigo, ausentes, flexibilizadas ou atenuadas as garantias inerentes ao conceito de pessoa humana.6

b) Tanto Estado Policial quanto direito penal do inimigo se alimentam da midiatização da criminalidade e da transformação do processo penal em uma tática de guerra. De acordo com instigante definição de Nilo Batista, o punitivismo consiste na ”referência cultural hegemônica do discurso jornalístico”7. Daí se falar em uma criminologia midiática. Os meios de comunicação de massa cooperam com a escolha, delimitação e popularização da figura do inimigo social. Fomentam, com o auxílio de iniciativas publicitárias, uma sociedade do espetáculo, com a qual setores do Poder Público colaboram ou são pelo menos condescendentes.

Dentro da óptica do combate ao inimigo social, o processo penal confunde-se com a guerra: trata-se antes da eliminação de um perigo, da domesticação daquele indivíduo que não se deixa conduzir ao estado de cidadania e, por conseguinte, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa8. Transfigura-se, então, numa notável exceção, fora das regras do jogo democrático do Estado de direito. De um lado, há uma Constituição liberal vigente, sob o pressuposto da garantia de liberdades individuais básicas e, de outro, há um conjunto de dispositivos de guerra destoante da tradição dos direitos fundamentais e com ela completamente incompatível.

E quem são os inimigos sociais na atual contextura? Uma vez que a opinião pública tenha lançado luzes sobre o problema secular da corrupção, espera-se que se produza uma era de ”criminalização da política”. Com efeito, desde que trazida à tona a sistemática promiscuidade entre os poderes econômico e político, há uma presunção relativamente forte, socialmente disseminada, de que os integrantes da classe política são criminosos, até que se prove o contrário. A presunção se estende também aos advogados e às advogadas da classe política, assim como à parcela do empresariado vinculada ao Poder Público.

Há algo extremamente problemático aqui: a presunção de inocência é a regra constitucional. Optar pela presunção de culpabilidade acarreta uma grave fissura no pacto constitucional e atinge diretamente o âmago da democracia. Se o acusado já se presume culpado, o processo penal configurará apenas um meio de aniquilação, ou na melhor das hipóteses um simulacro, em que a incriminação já é um resultado predeterminado e inescrutável.

c) Tais premissas são condensadas no conceito de lawfare. Lawfare é uma palavra inglesa, ainda pouco conhecida e explorada em terras brasileiras, mas que já vem chamando a atenção dos intelectuais norte-americanos há alguns anos. Provém de um trocadilho entre as palavras law (direito) e warfare (guerra): exprime a ideia de uso do direito como arma de guerra. Direito e guerra, afinal, de algum modo partilham do manuseio do poder.

Interessa-nos, sobretudo, a aplicação recentemente dada ao vocábulo lawfare como manipulação indevida dos aparelhos jurídicos do Estado para perseguição de adversários políticos e alcance de estratégias políticas9, por vezes em usurpação ao processo eleitoral. Segundo a definição semiótica10 de Susan W. Tiefenbrun, lawfare consiste em ”uma arma projetada para destruir o inimigo pelo uso, mau uso e abuso do sistema jurídico e da mídia com o intuito de criar um clamor público contra o inimigo”.11

Entre suas características dominantes, incluem-se: utilização seletiva dos meios jurídicos, através da triagem arbitrária de alvos de perseguição; utilização de manobras jurídicas com aparência de legalidade; judicialização de questões que deveriam ser resolvidas nos fóruns políticos (judicialização da política); destruição da imagem pública e constrangimento do adversário por meio de acusações frívolas e sem materialidade; interpelação de agentes públicos que se tornam fontes jornalísticas e buscam influenciar a opinião pública para atingir determinados fins morais ou políticos; infusão do sentimento generalizado de desilusão popular; e abuso inadequado da terminologia jurídica para influenciar pessoas leigas, presumivelmente inexperientes acerca da linguagem técnica do direito.

Em síntese, a lawfare se mostra um meio mais eficiente e menos dispendioso de desacreditar publicamente um adversário político e, assim, intervir nos rumos da vida política por intermédio de manipulação e instrumentalização do direito. A partir daí, basta a articulação entre interesses políticos escusos e a atuação associada do Poder Judiciário e do Ministério Público, capaz de criar um clamor em segmentos da opinião pública, para que alguém seja privado de sua liberdade ou de sua participação na esfera política. A preocupação central da arquitetura institucional das constituições democráticas é a criação de estruturas capazes de blindar a cidadania contra a tirania do Estado, tais como a separação de poderes baseada em um modelo de freios e contrapesos12. A lawfare deturpa totalmente essa estrutura de equilíbrio do poder. Dificilmente se poderia conceber um destino mais dramático para um Estado de direito.

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A associação de elementos do Estado Policial e do direito penal do inimigo com as técnicas de lawfare causa uma disrupção nas bases da sociedade democrática, na medida em que ofende seriamente princípios constitucionais como os do Estado democrático de direito, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, da presunção de inocência, da imparcialidade da jurisdição, entre outros. Outrossim, denuncia manifesto desvio de finalidade das instituições de persecução criminal (Ministério Público, Polícia e Judiciário).

A finalidade das atividades dessas instituições é o justo, equilibrado e razoável julgamento dos acusados, dentro dos limites da lei e respeitadas intransigentemente todas as garantias constitucionais e legais que revertem em seu favor – que são garantias que beneficiam qualquer cidadão que se venha a defrontar com o arbítrio do poder. Nada obstante, quando contaminadas pelos vestígios do autoritarismo, as instituições de persecução penal convertem-se em uma insólita máquina de produzir emulação13, é dizer, de causar constrangimento aos inimigos políticos por meio de um conluio entre autoridades judiciais, policiais, ministeriais e a mídia. Trata-se, neste caso, de um aperfeiçoamento sádico do instituto da emulação, pois posto em cena não por simples particulares, mas pelos agentes do Estado, que têm à sua disposição o acesso aos meios de coerção e repressão ”legítima”.

A advocacia se vê compelida a redobrar os esforços em seu múnus contramajoritário. Numa conjuntura em que ampla parte das instituições encarregadas de resguardar a democracia, em vez disso, a solapam, a advocacia remanesce como último recurso de socorro aos acusados que reivindicam julgamento dentro dos esquemas do devido processo legal. A advocacia se mantém inabalável em seu compromisso com a justiça, a legalidade e o Estado democrático de direito.

Muitas vezes, porém, não é possível ou viável que a defesa técnica se confine aos limites do processo. Fases dos ritos processuais – muitas delas sigilosas – transbordam os autos do processo e são divulgadas pela mídia, na tentativa de instituir uma espécie de tribunal popular. A ”carnavalização” do processo requer da advocacia o desafio de politizar-se mais e mais; de aprimorar sua capacidade de comunicar-se com o público e com a imprensa; de sofisticar seus argumentos e traduzi-los em códigos não só jurídicos como também políticos; e de permanecer ciente de sua indeclinável vocação para a defesa dos direitos, mesmo se for preciso engajar-se na árdua tarefa de enfrentar as maiorias sedentas pelo punitivismo. A advocacia é o antídoto definitivo contra o autoritarismo.

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1 Conferir uma discussão sobre o conceito de ”sociedade do espetáculo”, cunhado por Guy Debord, em: COELHO, Cláudio Novaes Pinto. ”Mídia e poder na sociedade do espetáculo”. In: Revista Cult. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 27/10/17.

2 A mesma opinião também é endossada por Lenio Streck. Conferir, por todos: STRECK, Lenio. ”O direito no Brasil por seus predadores”. In: Luis Nassif Online. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 27/10/17.

3 Ao ressalvar que nos restringimos a analisar Estados onde há uma democracia operante, ao mínimo segundo o critério formal (isto é, onde há rotatividade do poder mediante eleições), excluímos fenômenos extravagantes como as ditaduras, os regimes de exceção e as monarquias absolutistas.

4 Conferir meu artigo intitulado ”A natureza contramajoritária da advocacia e o recrudescimento do Estado Policial”. In: Portal Migalhas. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 27/10/17.

5 SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.

JAKOBS, Günther. ”Direito penal do inimigo”. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo – noções e críticas. 2ª ed. Org. e Trad.: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007 (p. 42).

6 BATISTA, Nilo. ”A criminalização da advocacia”. Disponível em: <clique aqui>. Acessado em 12/09/16. 

7 JAKOBS, Op. Cit., pp. 34-36.

8 Essa apropriação foi celebrizada pelo antropólogo sul-africano John Comaroff. Conferir: ”Lawfare representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política”. In: Portal Justificando. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 27/10/17. O conceito foi muito bem lapidado por TIEFENBRUN, Susan. ”Semiotic Definition of Lawfare”, 43 Case W. Res. J. Int’l L. 29, 60 (2010) – tradução nossa. Inicialmente, quando concebido por John Carlson e Neville Yeomans, lawfare encontrava emprego nas discussões sobre política externa, direito internacional e, particularmente, direito militar. Era considerada uma tática de paz, em que a guerra dava lugar à disputa por leis, a um “duelo de palavras em vez de espadas”. Sua popularização, contudo, só ocorreu com a publicação de ensaio de autoria de Charles Dunlap, Coronel da Força Aérea dos EUA, em 2001. Na oportunidade, Dunlap definiu lawfare como uma alternativa aos meios militares tradicionais, isto é, “o uso do direito e dos procedimentos jurídicos como uma arma na guerra (warfare) moderna, seja para alcançar um objetivo militar, seja para negar um objetivo ao inimigo” (TIEFENBRUN, Op. Cit., p. 51). Nessa perspectiva, lawfare é “a orquestração de violações das leis da guerra, que são empregadas como um meio não-convencional de confrontar um poder militar superior; (…) tende a ser usado como uma arma contra países onde o Estado de direito é forte (…); pode tomar a forma de uma campanha jurídica para deslegitimar e frustrar as ações de um Estado nacional dedicado à erradicação de métodos terroristas” (Ibid., p. 49).

9 Semiótica é a ciência dos signos; envolve a troca entre dois ou mais falantes pelo medium da linguagem codificada e da convenção. É o estudo científico da comunicação, da significação e da interpretação.

10 Ibid., p. 29.

11 A referência canônica dessa concepção remonta aos Escritos Federalistas. Conferir: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Trad.: Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003 (pp. 298-322). Para uma referência contemporânea, conferir, por todos: LEVINSON, Daryl. ”Parchment and politics: the positive puzzle of constitutional commitment”. Disponível em: <clique aqui>. Acesso em: 08/11/17.

12 Emulação, na acepção jurídica, é o abuso ou mesmo o exercício regular de um direito com o fim de prejudicar outrem.

Fonte: Antonio Oneildo Ferreira – Diretor-tesoureiro da OAB Nacional

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