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26
Mar

‘Caso Marielle’ reacende debate sobre prisão cautelar de parlamentares

A detenção dos supostos mandantes do homicídio da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (Psol), ocorrido em 2018, reacendeu a discussão sobre se é possível a prisão cautelar de parlamentares. A Constituição deixa claro que deputados federais e senadores só podem ser presos em flagrante delito de crime inafiançável, mas o Supremo Tribunal Federal já flexibilizou a regra para viabilizar o encarceramento provisório de políticos.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou no sábado (23/3) a prisão preventiva do deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro Domingos Brazão e do delegado de Polícia Civil Rivaldo Barbosa. Os três são apontados pela Polícia Federal como mandantes dos assassinatos de Marielle e do motorista Anderson Gomes. Assim, são suspeitos de terem praticado os crimes de homicídio, pertencimento a organização criminosa e obstrução das investigações. A medida foi referendada pela 1ª Turma do STF nesta segunda-feira (25/3).

A Constituição Federal, no artigo 53, parágrafo 2º, proíbe a prisão de deputado federal e senador, salvo se em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos são enviados à casa parlamentar para que decida se mantém ou relaxa a prisão.

Esse entendimento foi reafirmado pelo Supremo no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.526, em 2017. Na ocasião, a corte fixou que, após a expedição do diploma, um congressista só pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável, sendo incabível a prisão temporária ou preventiva. A corte também estabeleceu que medidas cautelares contra parlamentares exigem aval das casas legislativas caso impossibilitem, direta ou indiretamente, o exercício do mandato.

“A imunidade formal prevista constitucionalmente somente permite a prisão de parlamentares em flagrante delito por crime inafiançável, sendo, portanto, incabível aos congressistas, desde a expedição do diploma, a aplicação de qualquer outra espécie de prisão cautelar, inclusive de prisão preventiva prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal”, determina o acórdão, redigido por Alexandre.

Dois precedentes

Ao fundamentar a prisão preventiva de Chiquinho Brazão, Alexandre citou as decisões pelas quais o STF permitiu as prisões do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e do senador Delcídio do Amaral (PT-MS).

No primeiro caso, Alexandre, que era o relator da matéria, mandou prender em flagrante Silveira por atentar contra o funcionamento do Judiciário e o Estado democrático de Direito. A detenção, que foi mantida pelo Plenário, ocorreu depois de Silveira publicar um vídeo com ataques e incitação de violência contra integrantes do tribunal.

Como o vídeo continuava no ar, o ministro entendeu que havia crime permanente — e inafiançável. Ou seja, o deputado poderia ser preso a qualquer momento, pois seu caso se encaixava na exceção permitida pelo artigo 53, parágrafo 2, da Constituição.

“Aliás, outro ponto importantíssimo é que o artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição Federal somente permite a prisão em flagrante de parlamentares por crimes inafiançáveis, que é exatamente a hipótese. Isso porque, nos termos do artigo 324, IV, do Código de Processo Penal, não será autorizada a fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva. Ou seja, não haveria razoabilidade, tampouco lógica, em que, presentes os requisitos exigidos para a prisão preventiva, fosse possível a concessão de liberdade provisória, mediante fiança. Consequentemente, a presença desses requisitos da prisão preventiva afastaria a afiançabilidade do delito, como no caso em questão”, avaliou Alexandre em decisão no Inquérito 4.781.

Após Silveira ser condenado a oito anos e nove meses de reclusão pelos crimes de coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal) e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União (artigo 23 da Lei de Segurança Nacional — Lei 7.170/1973), o então presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu a ele a graça. Contudo, o STF anulou o perdão por desvio de função.

Prisão inédita

No segundo caso, o senador Delcídio do Amaral (PT-MS) foi o primeiro parlamentar detido no exercício do mandato desde a promulgação da Constituição de 1988. Ele foi preso cautelarmente por ordem do ministro Teori Zavascki — decisão referendada posteriormente pela 2ª Turma do Supremo — por tentar atrapalhar as investigações da “lava jato”.

O petista era acusado de integrar organização criminosa e obstruir as investigações. O primeiro é um crime permanente que a jurisprudência do STF reconhece como autônomo, por isso o flagrante pode ser feito a qualquer tempo. Já o segundo estava sendo praticado pelo senador ao supostamente agir para evitar investigações da “lava jato”.

Em sua decisão, Zavascki (morto em acidente aéreo em 2017) defendeu a possibilidade da prisão provisória de parlamentares. “O tom absolutista do preceito proibitivo de prisão cautelar do artigo 53, parágrafo 2°, da Constituição da República, não se coaduna com o modo de ser do próprio sistema constitucional: se não são absolutos sequer os direitos fundamentais, não faz sentido que seja absoluta a prerrogativa parlamentar de imunidade à prisão cautelar. Essa prerrogativa, embora institucional, é de fruição estritamente individual e, lida em sua literalidade, assume, na normalidade democrática do constitucionalismo brasileiro, coloração perigosamente próxima de um privilégio odioso”.

Ao autorizar a prisão em flagrante de congressistas, disse o ministro, a Constituição admitiu que eles fossem encarcerados antes do trânsito em julgado da condenação, desde que houvesse certeza visual ou quase visual do crime. Já ao exigir que o delito fosse inafiançável, a Carta Magna condicionou o cabimento da prisão em flagrante a um mínimo de gravidade da conduta do parlamentar.

“Não havia nem passou a haver, portanto, vedação peremptória à prisão cautelar de congressista, cumprindo ter presente a natureza jurídica de prisão cautelar da prisão em flagrante: havia e há apenas a cautela do constituinte em reservar a prisão cautelar de congressistas a hipóteses de maior gravidade e maior clareza probatória”, alegou Zavascki.

“Nessa ordem de ideias, deve ter-se por cabível a prisão preventiva de congressista desde que (i) haja elevada clareza probatória da prática de crime e dos pressupostos da custódia cautelar, em patamar que se aproxime aos critérios legais da prisão em flagrante (os quais incluem, vale lembrar, as hipóteses legais de quase-flagrante e flagrante presumido, em que o ato delituoso não é visto por quem prende), e (ii) estejam preenchidos os pressupostos legais que autorizam genericamente a prisão preventiva nos dias de hoje (artigo 313 do Código de Processo Penal) e os que impunham inafiançabilidade em 2001”, concluiu o ministro em seu voto no Referendo na Ação Cautelar 4.039.

Falta de consenso

Não há consenso sobre a prisão provisória de deputado federal ou senador. Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, entende que as garantias dos parlamentares devem ser interpretadas de acordo com o sistema constitucional.

“O STF possui jurisprudência que harmoniza os dispositivos do CPP com as travas constitucionais em relação aos parlamentares. O caso Daniel Silveira se torna paradigma. Os crimes imputados são inafiançáveis. O deputado (Chiquinho Brazão) estava em obstrução da Justiça. Há uma permanência no crime de homicídio. Estando presentes os requisitos da preventiva, a prisão se torna possível. Cabe à Câmara agora decidir. Não se trata de o STF restringir prerrogativa de parlamentar. Há dispositivos sobre liberdade e prisão que devem ser lidos em conformidade com o sistema constitucional. E, nesse sentido, o STF já fez essa leitura constitucionalmente adequada. Mais de uma vez”, destaca Lenio.

Citando a decisão do caso de Delcídio do Amaral, o criminalista e pesquisador Fernando Augusto Fernandes opina que o delito de pertencimento a organização criminosa é permanente. Portanto, pode haver prisão em flagrante a qualquer momento — e Alexandre acertou ao determinar a detenção de Brazão.

“Portanto, eu considero a decisão do ministro em relação ao deputado federal uma prisão em flagrante, para a qual não há restrição possível por interpretação do Supremo. É preciso que o Congresso Nacional avalie como compreende a prisão de um parlamentar por um fato gravíssimo, que é o maior assassinato político ocorrido na modernidade”, diz Fernandes.

De acordo com o artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição, não cabe a prisão de parlamentar em flagrante por crime afiançável, nem prisão temporária, nem prisão preventiva, afirma o advogado Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Porém, ele ressalta que, desde o caso de Delcídio do Amaral, o STF vem restringindo a imunidade parlamentar prisional, entendendo que o artigo 324, IV, do CPP torna inafiançável o crime quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Malan entende ser questionável se o Supremo pode restringir uma garantia fundamental do exercício da atividade parlamentar, como a imunidade prisional. “Sua natureza jurídica é de garantia funcional inerente ao mandato eletivo, assegurando condições de atuação parlamentar aguerrida e independente, ao proteger o congressista de prisões e persecuções penais arbitrárias e injustas (motivadas por questões de natureza ideológica, pessoal ou político-partidária)”.

“O artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição aparenta ter natureza jurídica de regra (e não de princípio), sendo insuscetível de ponderação com princípios conflitantes, à luz da proporcionalidade. Só são inafiançáveis os crimes assim abstratamente qualificados pelo legislador constituinte (artigo 5º, XLII, XLIII e XLIV). Como a liberdade ambulatória do acusado é a regra geral no Estado democrático de Direito, e a inafiançabilidade restringe tal direito fundamental individual, a inafiançabilidade não comporta interpretação judicial extensiva”, analisa o professor.

Condição básica

Como deputado federal, o criminalista José Roberto Batochio, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, redigiu a Emenda Constitucional 35/2001, que alterou a redação do artigo 53 da Constituição para estabelecer que um parlamentar só pode ser preso em flagrante por crime inafiançável.

O criminalista ressalta que o artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição deixa claro que não cabe nenhum tipo de prisão processual contra deputados federais e senadores. Assim, esses parlamentares só podem ser detidos em caso de flagrante de delito inafiançável ou condenação transitada em julgado.

Segundo Batochio, essa imunidade é condição básica do exercício do mandato legislativo, que é a “expressão maior do sistema democrático”. “Não importa o crime nem o suposto criminoso, a garantia é de funcionamento regular da essencial instituição democrática que é o Legislativo. Que se apurem, com todo rigor, os crimes, mas se preservem as franquias democráticas, fundamentalmente a liberdade fracionária do parlamento enquanto não formada a culpa”.

“Sem que a freedom of speech [inviolabilidade por opiniões, palavras e votos] e a liberdade corporal do parlamentar sejam garantidos contra as persistentes ondas autoritárias que sempre acometem os regimes livres, periclita o sistema. Direitos consagrados na Constituição não podem ser flexibilizados, pois são fundantes da estrutura e funcionamento do Estado. Assim se passa, por exemplo, com as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos integrantes do Judiciário: são intocáveis, ‘inflexibilizáveis’ e asseguradoras de seu livre e desimpedido funcionamento”, afirma o ex-presidente da OAB.

Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico

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