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30
Jun

Justiça brasileira alcança marca de 80 milhões de processos em tramitação

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2022, lançado nesta quinta-feira, na TV ConJur. A publicação está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa.

Poucas vezes na história do país a Justiça brasileira esteve sob ataque tão cerrado como nos dois últimos anos, que coincidem com um  recrudescimento da ofensiva por parte de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores. A volta  da normalidade nos julgamentos, com o arrefecimento da epidemia da covid-19, no funcionamento das cortes e na entrega de resultados mostra, antes de tudo, o vigor e a resiliência do Judiciário. Vigor para reafirmar sua importância capital de dar a última palavra nos conflitos e mostrar que, dentre os Poderes da República, é o que garante, em grande parte, o respeito ao Estado Democrático de Direito; e a resiliência de ter saído dessa crise com novas formas de trabalhar e de contato com o jurisdicionado.

Ao mesmo tempo em que administra uma das maiores crises institucionais da história recente, o Poder Judiciário segue produzindo para atender à demanda da sociedade, que se mantém elevada e persistente. Os números são robustos. A Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, contabilizou 80.129.206 processos
em tramitação nos tribunais e varas do Brasil no dia 31 de março de 2022. Em 2021, foram protocolados 27 milhões de casos novos e foram julgados 26 milhões de processos. Dados que mostram uma retomada na
busca pela Justiça, já o isolamento provocado pela  covid travou o crescimento dos litígios judiciais. Em 2019, os casos novos chegaram a 30 milhões. Cinco milhões a mais que no ano seguinte.

Houve também mudança significativa no perfil da demanda. Depois de encabeçar o ranking por volume entre 2015 e 2018, as reclamações trabalhistas perderam o lugar para o grupo de Direito Civil – que passou de 8,6 milhões de processos em 2018 para 10,6 milhões em 2021 (crescimento de 23%), enquanto o de Direito do Trabalho caiu de 8,6 milhões (2018) para 7,9 milhões – ou seja, 700 mil processos a
menos, ou queda de 8%.


Traduzindo em bom vernáculo, esses dados são o mais eloquente voto de confiança dos brasileiros no seu Judiciário. Em média, significa que para cada três brasileiros vivos, há uma ação em tramitação no Judiciário. Ou que a cada ano, um entre dez brasileiros vai à Justiça para superar litígios e levar inconformidades. E, na mesma medida, recebeu uma resposta de um juiz, um desembargador ou um ministro.

A grandiosidade dos números não representa um atestado de qualidade da Justiça e em alguns casos pode até mesmo indicar o contrário. Por exemplo: o prazo médio entre o protocolo de uma ação e a decisão final de um juiz da Justiça Estadual, que é, em média, de dois anos, oito meses e quatro dias, mostra que há muita coisa para melhorar. Mas as cifras com certeza provam a imprescindibilidade do Judiciário no dia a dia do cidadão brasileiro.


Quem acha que a grande preocupação da Justiça são os crimes do notório deputado Daniel Silveira e sua fábrica de fake news e grosserias está redondamente enganado. O tema mais frequente na janela de entrada das varas criminais do país em 2021 foi o tráfico de drogas, com mais de um milhão de processos novos protocolados. Um sinal de que a política de enfrentamento da questão sob o  prisma exclusivamente criminal talvez não esteja produzindo o resultado desejado. Muito atrás do tráfico aparecem os crimes de trânsito (348 mil casos) e os furtos (258 mil).

Na distribuição dos processos por tema, no entanto, o Direito Penal responde por apenas 13% dos casos  novos registrados em 2021. O Direito Civil, que engloba uma variada gama de subtemas, como contratos, responsabilidade civil e Direito de Família, responde por 20% dos casos novos, enquanto o Direito do Trabalho, que por si só constitui um ramo específico da Justiça, dá conta de 15%.

De acordo com a Tabela de Classes Processuais e Assuntos do CNJ, no entanto, três temas isoladamente estão no topo das ocupações do Judiciário e das preocupações dos brasileiros: impostos, consumo e previdência social. Com efeito, as questões ligadas ao Direito
Tributário representam 10,5% dos casos novos registrados em 2021, as de Direito do Consumidor são 9,6% e as de Direito Previdenciário 6,3%. Entre os grandes temas aparece ainda o Direito Administrativo e o Direito Público, que tratam das relações do Estado com as pessoas físicas e jurídicas, com 7,3%.

Em 31 dezembro de 2021, a maior parte dos 72 milhões de processos em tramitação – 54 milhões (74%) – estava na Justiça Estadual, formada por 26 Tribunais de Justiça mais o do Distrito Federal. Trata-se do ramo do Judiciário com competência mais abrangente, além de ser o mais pulverizado no território nacional, com unidades judiciárias localizadas em municípios menores.


A Justiça Federal, que julga conflitos em que a  União seja parte, composta de cinco Tribunais Regionais Federais mais um em vias de instalação, concentrava 12,7 milhões de processos pendentes (ou 17% do  total) seguida da Justiça do Trabalho, com 5,1 milhões (6%), a Justiça Eleitoral, com 243 mil, e a Justiça Militar, responsável por apenas 8,7 mil processos em trâmite.

Dos casos pendentes, 57 milhões estavam em primeira instância:
22 milhões ainda na fase de conhecimento do processo e 34 milhões
já em fase de execução da decisão. Chama a atenção que, desses, 23,5
milhões (32% do total de processos em tramitação) são as  velhas conhecidas execuções fiscais, que, normalmente, ficam paradas anos a fio por falta de localização de bens do devedor. As execuções fiscais têm uma das maiores taxas de congestionamento do país: 87% em 2020. Isso quer dizer que, a cada 100 ações de execução fiscal que ocorreram em 2020, apenas 13 foram baixadas.

O tempo de espera por uma sentença, na fase de conhecimento, é de 11 meses, mas, na fase de execução, para que o vitorioso receba o que é seu por direito, a espera é bem mais longa: seis anos e sete meses em média. O sistema de busca de ativos do Judiciário vem se aperfeiçoando. Segundo dados do Sistema de Busca de Ativos (Sisbajud), do CNJ, usado por juízes dos cinco segmentos de Justiça, o sistema foi responsável por R$ 104,6 trilhões em bloqueios em contas bancárias e de investimento entre 2009 e 2021. Do total bloqueado no período, a maior parte foi feita
no âmbito da Justiça Estadual (R$ 103,8 trilhões), seguida pela Justiça
do Trabalho (R$ 742,5 bilhões) e pela Justiça Federal (R$ 47,5 bilhões).

Mas não só de milhões de processos o Judiciário faz sua jornada.
Também em decisões singulares, mas de amplo impacto, a  Justiça marcou os rumos da nação em situações das mais complexas. Um
caso exemplar foi sua atuação nos últimos dois anos na definição de
políticas públicas de saúde no enfrentamento da epidemia de
covid-19. Coube ao Judiciário arbitrar sobre a legalidade das medidas
de restrição adotadas para combater a disseminação do vírus, a compra e a distribuição de equipamentos e insumos hospitalares, a obrigatoriedade de uso de máscara, a aplicação de vacinas e até a realização de cultos e
missas e o uso de medicamentos sem eficácia comprovada.


Foi justamente na decisão sobre a competência dos entes federativos na administração da crise sanitária, ao definir que as responsabilidades em  saúde pública são  solidariamente compartilhadas por  União, estados e municípios, que o STF deixou clara a omissão do governo federal na coordenação dos esforços para superar a epidemia e suscitou a fúria do presidente da República e seus asseclas contra a corte e seus ministros.

A indignação do presidente, manifestada em eventos públicos como os atos de comemoração do Dia da Independência e disseminada em profusão nas redes sociais, subiu de patamar quando outra decisão do Supremo Tribunal Federal impulsionou a instalação da CPI da Covid no
Senado, que, ao longo de seis meses, investigou ações, omissões e
irregularidades praticadas pelo Executivo no curso da epidemia.

“O Supremo não age sem provocação para definir políticas públicas, mas sim é acionado para dirimir conflitos e garantir direitos. Seria interessante se o Tribunal tivesse a prerrogativa de decidir não decidir, entender que a sociedade não está preparada para determinado tema.
Mas, no regramento brasileiro, não existe essa possibilidade explícita”, afirmou o ministro Luiz Fux, presidente do STF, em entrevista ao Anuário da Justiça.

Coube ao TSE comandar outras duas frentes de batalha nas celeumas
semeadas pelo Poder Executivo federal na tentativa de desacreditar
o Judiciário. A corte eleitoral, que em razão da alta rotatividade
de seus membros tem sua força no colegiado, terá três presidentes em
2022 – Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes –, mas
os três mantiveram a mesma postura na defesa do sistema eleitoral
eletrônico e no combate às fake news – as reais ameaças levantadas
contra as eleições gerais de outubro. “É sempre muito difícil. Nós temos
um novo mundo também, em função da internet, e precisamos
estar atentos a tudo isso. Mas, eu espero que todos nós, inclusive a sociedade, estejamos mais preparados para enfrentar esse desafio”, diz o
ministro Gilmar Mendes.

Em entrevista ao Anuário da Justiça, Roberto Barroso disse esperar
um desfecho tranquilo em relação ao processo eleitoral. “Como
demonstrado desde 1996, quando da implantação das urnas eletrônicas,
o sistema promove eleições limpas e seguras. Diversas medidas
de transparência foram tomadas. O TSE tem trabalhado muito pela garantia da segurança das eleições. De modo que tenho plena convicção de que, mais uma vez, a Justiça Eleitoral entregará resultados íntegros
e confiáveis à população”, afirmou.

No Superior Tribunal de Justiça, responsável pela interpretação das leis federais, a Fazenda Pública luta para evitar prejuízos. A 1ª Turma atendeu a um dos seus pedidos em tema de alto impacto: admitiu a possibilidade de usar embargos de declaração para aplicar a modulação da chamada “tese do século”, definida pelo Supremo, a processos que não passaram a barreira do conhecimento no STJ. Essa situação é registrada em processos ajuizados após a decisão do STF, de 2017, de excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, mas que chegaram ao STJ antes da ordem de modulação dos efeitos, de 2021. A aplicação imediata interessa à Fazenda porque a modulação reduziu os valores que deveriam
ser devolvidos a título de PIS e de Cofins aos contribuintes. A 1ª Turma
tem reconhecido os recursos da Fazenda, ao contrário da 2ª Turma.

Na 2ª Seção do STJ, competente para julgar questões de Direito
de Consumo, os principais embates travados atualmente dizem respeito à saúde privada. E o mais preocupante hoje é o rol de procedimentos, definido e atualizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Os planos de saúde defendem a sua taxatividade, enquanto os
segurados pedem que o rol seja considerado apenas exemplificativo. A decisão dos ministros nessa questão terá grande impacto no mercado de planos de saúde, que engloba quase 50 milhões de beneficiários.

No Tribunal Superior do Trabalho, uma das primeiras iniciativas do novo presidente, ministro Emmanoel Pereira, foi criar um grupo de trabalho para estudar os impactos da Reforma Trabalhista – a Lei 13.467/20017
– na Justiça do Trabalho. A aplicação da nova legislação tem gerado muitas divergências, da primeira instância ao tribunal superior.

Motoristas de aplicativos, por exemplo, ainda não têm uma resposta definitiva quanto à existência de vínculo empregatício com essas empresas. Há divergências no TST. A 4ª Turma entende que não há subordinação jurídica, pois o trabalhador não se submete a ordens, nem habitualidade. Fica a cargo do profissional decidir os dias e os horários
em que irá trabalhar. Já a 3ª Turma entende que estão presentes todos os elementos que caracterizam o vínculo: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. Uma decisão final da corte sobre o tema poderá impactar 1,4 milhão de pessoas que trabalham com transporte e
entregas no país, de acordo com os dados mais recentes do Ipea, de outubro de 2021.

Transformação digital
Novos processos em papel tendem a virar raridade nos tribunais. Desde 1º de março de 2022, os tribunais brasileiros só aceitam processos em formato eletrônico. A restrição a processos físicos está prevista desde setembro de 2021, quando o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução CNJ 420/2021, para acelerar a transformação digital na Justiça. Em 2021, apenas duas em cada 100 ações começaram em papel, de acordo com o Painel Estatístico do Poder Judiciário.

Em 2009, os processos eletrônicos equivaliam a apenas 11,2% dos novos processos. Em março de 2022, o índice saltou para 98,9%. Os poucos processos que começaram a tramitar fora do sistema eletrônico, 354 mil (2% do total), ingressaram pela Justiça Estadual, sobretudo. Entre os processos pendentes de julgamento, entretanto, a realidade é diferente. Em março de 2022, 20% do acervo do Judiciário ainda estava em papel.

Com a transformação digital em curso, a Justiça brasileira investe agora em ferramentas de inteligência artificial. Hoje, existem ao menos 64 delas instaladas em 44 tribunais e no CNJ, de acordo com o levantamento Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário, feito pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário (Ciapj) da FGV e publicado em abril de 2022.

As ferramentas, nas suas diferentes fases, podem ser divididas em quatro grupos principais. Uma pequena parcela destina-se a auxiliar nas  atividades-meio do Judiciário, para melhorar a gestão de recursos
financeiros e de pessoal. O segundo grupo, da grande maioria dos modelos, destina-se à automação dos fluxos de movimentação do processo e das atividades executivas de auxílio aos juízes, por meio da execução de tarefas predeterminadas. Esses modelos computacionais dão apoio à gestão de secretarias e gabinetes, fazendo triagem e agrupamento
de processos similares, classificação da petição inicial, transcrição de audiências etc.

No terceiro grupo, em menor quantidade, há modelos de inteligência artificial que dão suporte para a elaboração de minutas de sentença, votos ou decisões interlocutórias. E, no quarto grupo, há iniciativas relacionadas a formas adequadas de resolução de conflitos, em que se usam informações de processos similares para auxiliar as partes
na busca da melhor solução.

De acordo com os pesquisadores, em conjunto, estas iniciativas permitirão melhorar a estrutura, tornar a prestação jurisdicional
mais eficiente e identificar os problemas de um dos maiores Judiciário do mundo.

Anuário da Justiça Brasil 2022
ISSN: 2179981-4
Edição: 2022
Número de páginas: 288
Editora ConJur
Versão impressa: R$ 40, exclusivamente na Livraria ConJur (clique aqui)
Versão digital: acesse gratuitamente pelo site http://anuario.conjur.com.br e pelo app Anuário da Justiça

Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico, Severino Goes é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

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