Racismo e injúria racial no mercado de trabalho: A luta contra a discriminação
Ao comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra, a sociedade brasileira promove a reflexão sobre a importância da cultura e do povo africano na formação da cultura brasileira. A data comemorativa foi instituída pela Lei 10.639/2003. Uma homenagem a Zumbi dos Palmares, que morreu em 20 de novembro de 1695. Zumbi representou a luta do negro contra a escravidão, no período do Brasil Colonial. Abolimos a escravidão física, os chicotes, troncos, grilhões e demais instrumentos de tortura, mas ainda mantemos viva na mente a escravidão do preconceito, repetida por séculos.
As condutas racistas podem ser definidas como um sentimento de superioridade biológica, cultural, moral de determinada raça, povo ou grupo social considerado como raça. São manifestações da crença na existência de raças humanas distintas e superiores umas às outras. O racismo é tão comum que chega a ser invisível para quem não é vítima. As leis brasileiras e as normas internacionais proíbem ao empregador e qualquer pessoa a adoção de qualquer prática que implique preconceito ou discriminação em virtude de raça. Nesse sentido é a orientação expressa na Constituição Federal, artigo 3º, inciso IV e artigo 5º. A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1958, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 62150, de 19/1/1968, estabelece a eliminação de toda discriminação em matéria de emprego, inclusive por motivos de raça.
Diante das novas legislações e políticas afirmativas, as empresas hoje têm buscado aplicar métodos e estratégias para o combate à discriminação e ao racismo, proibindo condutas discriminatórias, assédio e todas as formas de opressão exercidas sobre empregados com base em diferenças raciais. Mas, ainda existem aqueles empregadores indiferentes a essa nova mentalidade, que demonstram preconceito em relação ao trabalhador negro. Isso pode ser verificado pela grande incidência de processos na Justiça do Trabalho mineira, que denunciam a prática de racismo e de injúria racial no ambiente de trabalho.
Nesta coletânea, é possível conhecer algumas decisões da Justiça do Trabalho sobre o tema. Acompanhe!
Legislação aplicável à matéria
As leis brasileiras e as normas internacionais proíbem ao empregador e a qualquer pessoa a adoção de qualquer prática que implique preconceito ou discriminação em virtude de raça. Nesse sentido é a orientação expressa na Constituição da República, artigo 3º, inciso IV, e artigo 5º. A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1958, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 62150, de 19/1/1968, estabelece a eliminação de toda discriminação em matéria de emprego, inclusive por motivos de raça. É importante destacar a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, na qual se reafirmou o compromisso dos Estados-membros, dentre os quais figura o Brasil, de aplicar o princípio da não discriminação em matéria de emprego e ocupação. Nesse sentido também a Lei nº 9.029, de 13/4/1995.
Racismo X injúria racial – A Constituição de 1988 estabelece, no artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Já o inciso XLII do mesmo artigo dispõe que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível. E não para por aí. Foi introduzido no Código Penal o parágrafo 3º ao artigo 140, que trata do crime de injúria, cuja pena é de detenção, de um a seis meses, ou multa. No entanto, se a injúria for praticada com referência à raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é agravada, passando à reclusão, de um a três anos e multa. E a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei nº 9.459/97, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
O bem jurídico protegido pelo tipo injúria racial é a honra subjetiva. Nela, a ofensa se dirige à raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição da pessoa com deficiência ou idosa (rol exemplificativo), tendo como vítima pessoa determinada. Exemplo: tratar o trabalhador de forma discriminativa, como ocorreu no caso em que um empregado negro foi chamado de “neguinho cabelo de vassoura, canarinho de coqueiro, brasa apagada e beiço de apagar goteira”, o caso foi relatado no processo PJe nº 0010950-12.2016.5.03.0095, ajuizado perante a Vara do Trabalho de Santa Luzia e julgado pelo juiz Antônio Carlos Rodrigues Filho. Nesse caso, a empregadora foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais no valor de 5 mil reais, com responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços, que se beneficiou da mão de obra do empregado.
Por sua vez, o crime de racismo, previsto em lei especial, a Lei 7.716/89, visa a proteger a dignidade da pessoa humana. Na modalidade, a ofensa é dirigida à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (rol exemplificativo).
Decisões
Empresas de telecomunicações pagarão indenização de R$ 10 mil por ofensas raciais
Na 3ª Vara do Trabalho de Betim, o juiz Daniel Gomide Souza analisou uma situação marcante, que ilustra bem essa realidade. Diante da comprovação de que o trabalhador foi vítima de injúria racial, o magistrado condenou duas empresas de telecomunicações ao pagamento de uma indenização por danos morais, no valor de R$ 10 mil.
No caso, o empregado de empresa terceirizada trabalhava em altura com instalação de cabos de telefone. Em sua ação, ele relatou que, durante o contrato de trabalho, era discriminado pelo chefe, que dirigia a ele insinuações discriminatórias e racistas, tais como: “quando o cabo era muito alto e a escada não alcançava, ele dizia para subir e amarrar o rabo, insinuando que fosse macaco”. Segundo o trabalhador, isso acontecia com habitualidade e na presença dos demais integrantes da equipe.
Durante a audiência, afirmou que o chefe já fez diversas piadas, comparando-o com um macaco. Segundo o autor da ação, o chefe falava, quando via micos, que se tratava da família do trabalhador. Conforme relatou, o chefe era rude com os demais membros da equipe, mas não fazia esse tipo de brincadeira. De acordo com o depoimento, o trabalhador levou esses fatos ao conhecimento da empresa.
Ao ouvir as testemunhas, o magistrado constatou que o chefe costumava tratar o trabalhador com apelidos de cunho racista, como macaco, mico, urubu. Inclusive, havia outras pessoas de cor negra na equipe, mas não recebiam o mesmo tratamento. Para o julgador, existe prova robusta da agressão sistemática ao trabalhador, de forma acintosa à sua dignidade e visando a sua exclusão do ambiente de trabalho.
Conforme acentuou o magistrado, mesmo com a miscigenação tão comum à população brasileira, diariamente se vê tratamento discriminatório em decorrência da raça ou da cor da pele, especialmente quando a vítima é pobre. “Por mais que o legislador desestimule tal prática, criminalizando a conduta (Constituição da República, art. 5º, XLII, Lei 7.716/89 e art. 140, § 3º, CP) e estabelecendo que o crime é inafiançável e imprescritível, talvez pela frequente impunidade ainda são muito comuns acontecimentos como o relatado na inicial”, completou.
O julgador levou em consideração vários critérios para a fixação da indenização por dano moral no valor de R$ 10 mil. Ao finalizar, ele pontuou: “Não importa quantas pessoas presenciaram o fato, nem se a vítima chorou. Interessa apenas que o preconceito não é permitido pelo ordenamento jurídico e ninguém pode agredir a esfera moral (imagem, honra, intimidade, vida privada) de outrem sob qualquer pretexto sem a devida punição. Quando a empregadora agiu de forma preconceituosa e aviltante, andou mal e precisa ser punida para que o fato não se repita”. Há recurso aguardando julgamento no TRT mineiro.
Processo nº 0012054-12.2017.5.03.0028. Data: 30/10/2019
Juíza confirma justa causa de empregada que proferiu palavras racistas contra colega de trabalho
A reclamante trabalhava para uma empresa de “call center” e foi dispensada por justa causa, sob a acusação de ter praticado ato de racismo contra uma colega de trabalho. Ela procurou a Justiça pretendendo a reversão da medida. Mas, ao analisar o caso na 2ª Vara do Trabalho de BH, a juíza Daniele Cristine Morello Brendolan Maia não deu razão à empregada. Pela prova testemunhal, a magistrada pôde constatar que a reclamante, de fato, durante o expediente na empresa, dirigiu palavras ofensivas a uma colega de trabalho em razão da cor de sua pele, chamando-a de “preta nojenta”. Para a julgadora, a atitude caracteriza “mau procedimento”, autorizando a dispensa por justa causa, nos termos do artigo 482 da CLT.
A empresa trouxe uma carta assinada pela empregada ofendida, além de outras duas cartas de duas empregadas, todas relatando que presenciaram o ato racista praticado pela trabalhadora e que motivou sua dispensa. Mas, para a juíza, as cartas constituem documentos unilaterais da empresa, mesmo porque nenhuma das empregadas que as assinaram foram indicadas como testemunhas no processo. Além do mais, a julgadora ponderou que a empresa não apresentou nenhum termo assinado pela reclamante e ainda admitiu que a dispensou sem ouvi-la sobre o ocorrido.
De toda forma, como observou a juíza, a supervisora do setor em que trabalhava a reclamante e a empregada ofendida foi ouvida como testemunha da ré. E ela confirmou que a empregada a procurou queixando-se de que a autora a tinha chamado de “preta”. Mas, mesmo assim, em razão da seriedade das questões discutidas, que envolvem atos de racismo e mau procedimento e que, segundo a magistrada “devem ser tratados com todo cuidado”, ela decidiu ouvir, como testemunhas do juízo, mais duas empregadas que presenciaram os fatos. Uma delas contou que, certo dia, quando a colega de trabalho passou pelo corredor e encostou na reclamante, esta disse que “não era para encostar nela, porque não gostava de preto e ela era uma preta nojenta”. Segundo a testemunha, a reclamante estava com outras colegas que deram risada e zombaram da empregada, “que se sentou e começou a chorar”. Foi quando outras pessoas que também presenciaram os fatos aconselharam-na a procurar a supervisora e contar tudo, já que se tratava de racismo.
Por tudo isso, a juíza concluiu que a reclamante, de fato, ofendeu sua colega de trabalho com palavras racistas, o que configura “mau procedimento”, nos termos do artigo 482 da CLT, autorizando a dispensa por justa causa. “Não há dúvidas do ato racista praticado pela reclamante, motivo pelo qual entendo que a justa causa que lhe foi aplicada pela empresa deve ser mantida, finalizou a julgadora, rejeitando o pedido da reclamante de reversão da medida e de pagamento de verbas rescisórias. A ex-empregada recorreu ao TRT, mas a decisão do juízo de 1ª instância foi mantida.
PJe: 0010392-91.2017.5.03.0002 (RTOrd) — Sentença em 31/08/2017
JT-MG aumenta para R$ 10 mil indenização que supermercado terá que pagar por injúria racial
No julgamento realizado na 11ª Turma do TRT mineiro, a desembargadora Adriana Goulart de Sena Orsini decidiu aumentar para 10 mil reais o valor da indenização a ser paga por um supermercado ao empregado, vítima de injúria racial. Atuando como redatora do recurso do supermercado, a magistrada entendeu que havia provas consistentes do assédio moral, em razão das ofensas de cunho racial que o chefe dirigiu ao trabalhador.
Na primeira instância, a juíza sentenciante condenou o supermercado ao pagamento de uma indenização por danos morais, fixada em 7 mil reais. Para ela, foi demonstrado que o chefe do trabalhador, na prática do vil preconceito racial, vivia fazendo piadas de mau gosto e usando expressões discriminatórias, com o intuito de depreciar e diminuir o valor social da pessoa de pele negra, como se o comportamento ético pudesse ser avaliado a partir da cor do ser humano e não pela sua própria conduta.
Nessa mesma linha de entendimento, a desembargadora redatora do voto vencedor na Turma concluiu que os depoimentos das testemunhas foram suficientes para caracterizar o dano moral experimentado pelo trabalhador. Ela destacou o relato de algumas “piadinhas” que partiam do chefe e eram dirigidas exclusivamente ao trabalhador. Segundo a testemunha, o chefe dizia que “quem gostava de urubu era vaqueiro de fazenda”, “que tomou raiva de preto depois que o urubu comeu o seu cachorro”, e que também contava estória de três urubus “onde a moral da história era que preto rico não se mistura com pobre”.
De acordo com a testemunha, esses comentários só surgiam quando o trabalhador estava por perto, sendo que o chefe ainda costumava chamá-lo de “negão” e “macaco”. Isso acontecia com frequência e a vítima não reagia de imediato, mas a feição do seu rosto mudava, segundo declarações da testemunha. Ela relatou ainda que, depois de certo tempo, houve uma desavença entre eles por causa dessas atitudes do chefe. Tudo foi confirmado por outra testemunha, que acrescentou que as “brincadeiras” eram feitas na frente dos clientes, que perguntavam se o empregado não iria se defender, mas ele achava melhor “deixar pra lá”. Mais duas testemunhas, indicadas pelo supermercado, apresentaram depoimentos em sentido contrário. Ou seja, afirmaram que o ambiente de trabalho era saudável e que nunca presenciaram racismo na empresa.
A desembargadora considerou mais convincentes as declarações das duas primeiras testemunhas, confirmando que o chefe costumava dirigir ao repositor comentários e piadas de cunho racista. Na percepção da julgadora, as testemunhas indicadas pela empresa apenas não presenciaram os fatos, o que não compromete a validade da versão apresentada nos primeiros depoimentos. “Ambas as testemunhas apresentadas pelo autor presenciaram tais incidentes, mais de uma vez, confirmando, portanto, o tratamento ofensivo”, completou.
Diante da reiteração da conduta praticada por um preposto da empresa, a magistrada entendeu comprovada a prática de injúria racial contra o empregado. “Destaca-se, ainda, que compete à reclamada zelar pelo meio ambiente de trabalho, proporcionando um ambiente livre de agressões morais e injúrias. E, considerando o porte da reclamada e a gravidade da conduta, inclusive tipificada pelo Código Penal como crime, elevo o dano moral fixado na origem para R$10.000,00”, concluiu a redatora do voto, cujo entendimento foi acompanhado pela maioria da Turma julgadora. (PJe: Processo nº 0010630-40.2015.5.03.0145-RO).
Auxiliar de cozinha é vítima de injúria racial por ser judeu e negro
Na 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, o juiz André Barbieri Aidar condenou uma empresa de comércio de alimentos ao pagamento de uma indenização, no valor de R$ 17.500,00, a um empregado vítima de injúria racial. Ao julgar o recurso da empresa, a 2ª Turma do TRT mineiro decidiu reduzir o valor da indenização por danos morais para R$ 5 mil. Isso porque, na visão do desembargador Jales Valadão Cardoso, relator do recurso, ficou dividida a prova testemunhal relativa às ofensas que teriam sido dirigidas ao trabalhador pelos sócios da empresa.
Pelo que foi apurado no processo, dois sócios da empregadora faziam comentários ofensivos e preconceituosos, dirigidos ao auxiliar de cozinha, somente pelo fato de ser ele judeu e negro. Na análise da prova testemunhal, concluíram os julgadores, tanto em primeira quanto em segunda instância, que realmente ficaram comprovados os fatos noticiados na petição inicial, que demonstram o tratamento discriminatório praticado pelos sócios. O juiz sentenciante acrescentou que, embora os ofensores não fossem empregados da empresa, atuaram como verdadeiros prepostos, inclusive com poderes de mando.
“Dessa forma, nos termos do art. 932, III, do CCB, o empregador responde pela reparação civil no caso de danos causados por seus empregados e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele, sobretudo porque era seu dever propiciar aos empregados ambiente de trabalho sadio e manter constante vigilância sobre seus subordinados, a fim de prevenir situações como as descritas”, enfatizou o juiz ao condenar a empresa ao pagamento da indenização. (PJe: Processo nº 0011568-03.2016.5.03.0112-RO).
Leitura recomendada:
– Leia aqui o artigo “Discriminação racial e assédio moral no trabalho”, disponível na JusLaboris. A autora é Rúbia Zanotelli de Alvarenga, doutora e mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas, professora de Direito e advogada.
– Leia aqui “Por uma segunda abolição”, texto da autoria de Gilberto Gil, publicado no “Le Mond Diplomatique – Brasil”, em 2009, ocasião em que era ministro da Cultura.
Clique aqui para ler a jurisprudência do TRT-MG sobre racismo no trabalho
Clique aqui para ler a jurisprudência do TST sobre racismo no trabalho